
LUA ENCAIXOTADA
Ficaram mesmo são as caixas de papelão. Tinham que estar ali grudadas pelas paredes da garagem nova. Estrategicamente colocadas para esconder. Para conter. É que as unhas precisa-se cortá-las de tempos em tempos se o chão não oferece rugosidade e grosseria suficientes. Se ninguém as apara, se na curta corrida sobra o deslize, se a energia acumulada não é gasta num passeio pela calçada de cimento, resta a parede para unhar. Vários arranhões até conseguir esburacar e lixar as unhas na textura pós-reboco coberta pela melhor tinta. A situação foi ficando insustentável. Não se sabe quem teve a ideia das caixas, quem teve a percepção de que ah, isso sim, funcionaria. A ideia plantada nas profundezas misteriosas das conexões entre as misérias e alegrias dos seres foi a solução possível. Eu direi que entendo, direi quem sou eu para condenar, afinal, quem passaria a ver na garagem, uma paisagem lunar bem à mão, na junção do chão com a parede? Quem preferiria brincar de entrar, sem gravidade, num mundo paralelo em que finalmente se entra naquela via de volta à caminhada mansa? Passos para serem soprados como bolhas de sabão que mal se vê alcançarem o chão. E... Por suspensos instantes, discussões sobre a volta à lua cessadas. Projeto desrespeitoso de construção de uma nova lua artificial, lá na China, engavetado. Faça-se menos luz, por favor. Sim, gostamos de franjas de noites iluminadas por lâmpadas laranjas. Sim, pensamos que becos com luz são menos perigosos. O problema, meu amigo, minha amiga, é que noites virando dia não acalentam vontade de sono. É preciso dormir no escuro da madrugada. Sim, acordar de vez em quando para ouvir o silêncio, para meditar, para tomar ar. Só que aí é preciso dormir cedo depois... Tudo para dizer que, na verdade, temo esse povo que mal dorme. Madruga, só que vai para cama no mesmo horário de antes da modinha do acordar cedo. Vira um povo chato, irritadiço, intolerante, que não pondera, só quer ter razão, feito criança cansada. Me conta: quem perde a novela e vai para cama com o por do sol, com o nascer da lua? Quem olha a lua, aliás? Quem sente o raio na pele, nos pelos? O meu amigo que sabe como trazer a lua para garagem esse eu sei que sente. Quantas vezes já o peguei escarrapachado ao luar sendo feliz ali no porcelanato mesmo, sem uma terrinha, uma graminha para descarregar o dia. As unhas, é claro, bem gostariam de fazer mais um buraquinho. Mas foi vencido pela proximidade das caixas, talvez pelo cheiro ou pelo barulho do papelão afasta cão. Não chega nem perto. Medo puro. Esconjuro. Parece alguma lembrança medonha. Um eterno eclipse. Os que sabem da sua história têm uma suposição bastante plausível. Fazia parte de uma ninhada que foi achada na rua passando fome. Provavelmente, desenvolveu a ojeriza à caixa porque teve que permanecer nesse arremedo de abrigo durante um tempo ingrato. Ele, ainda um cisco, soterrado por aquele tsh, tsh (ou alguma onomatopeia que lembre um barulho de passinhos no papelão), reverberando no aperto da movimentação. Fragilidade descoberta ao acaso, hoje ela mantém o bicho afastado das broncas ou quem sabe das palmadas. E ele só queria, só quer mesmo um passeio. Cheio de lua, no meio da rua, da chuva. Vai atrás de grutas em que possa ser livre, mas se proteger do abandono. Dono. Dono.
Essas luas a seguir são para ele e para mim que somos de lua mesmo. Queremos a rua mesmo. Nem que seja para acabar na casa de um João Torresmo. No caminho, estamos sempre à procura da lua nessa Curitiba encoberta, que se gosta tanto deserta.