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  • Foto do escritorCAIXA CAIXOTE CAIXÃO

Litrão sem vergonha

Atualizado: 16 de dez. de 2022



Não sei você, mas eu penduraria as bonecas geradas e juntadas pela Efigênia numa sala separada, com uma iluminação especial para o ambiente. Não penduraria por pendurar, tudo no mesmo lugar, junto das outras dezenas de objetos. Não deixaria tudo na mesma sala para gente ver tudo e não ver nada. Os trabalhos do Hélio e da Efigênia pedem espaço e vazio, luz e cenário. Pedem para performar, se formar e provocar erro na vista do espectador. Erro sim. São compostos de tanto e mais... São construídos por pedacinhos, papeizinhos, papelzões, tampinhas, tamponas, trocinhos, troções, lãzinhas e nozões, lixinhos, lixões, vontades de proporcionar o renascer de outras coisas, certezas de tecer caminhos mais respiráveis, suportáveis. Ao formar erro na vista do olhador, faz um mix de tudo, bate bem, revira, gira. Comemos com os olhos. Eles cozinham receita nova, alimento colorido e farto que vai se entranhando. A gente nem espera. É um consumo tão secreto, que há de se fazer claro logo, logo. Incorpora-se em profundidade e, de repente, já é. Já somos. Já faz parte. Não se impõe. Vai chegando e, pumba, uma rasteira para virar acerto intrínseco. Abrimos cada obra como um forno-cofre com número, vejamos, fácil de descobrir. Uma tampa enfurnada para quem tem coragem de abrir. Coisa nua na insignificância. Um tudo ou nada. Muito mara. Um mais que vestir que transforma corpo num residual de liberdade. Que nos torna responsáveis pela embalagem que nos cativa na prateleira para depois provocar nossa cara de paisagem, nos fazer de desentendidos.

É tanto material... Coisinha por coisinha, ato por ato. A procura por encaixar mais um negocinho, por encapsular mais outro, pendurar outro tanto, cobrir sem manto. Perdurar sem sujar. Uma vontade de digerir tudo, não deixar mais nadinha boiando nesse mar, se acumulando nessa terra, vazando nessa atmosfera. Que triste embalo do consumo e do real. Dinheiro irreal. Realidade matreira. Verdade que significa só para alguns. Insignificância que ganha os corações de quem tem gana para brigar com a dor e a destruição, a riqueza e a escavação de um futuro de enterramentos e internamentos.

Tirei foto com o Hélio. A Efigênia não quis ir na abertura da exposição no MAC-MON (Aliás, cadê o MAC, gente?). Pensemos aqui com nossos botões, ajudados pelo Hélio, o porquê de Efigênia não ter ido. Mobilidade, idade. Já imaginou o tanto de gente querendo tirar foto? O instinto que extingue o bom senso, estimulado por redes sociais, não poupa ninguém. Pensei com uma amiga: Efigênia teria que estar longe da muvuca. Foto de longe? No pedestal? No alto? A rainha não gostaria. Ela parece gostar de gente, mas haja paciência e ânimo para corresponder às expectativas dos chatos de plantão, dos arrumadinhos cheios de chavões.

Tava cheio, querida Efigênia. Ainda bem que você não foi. Não sei se você gostaria de enxergar suas peças ali na sala do museu, arrumadas como para uma feira. Que se fizesse uma feira no gramado do Museu, então. Muito mais escape e retina ao ar livre. Mais lugar para o olhar passear e ir pousando aos poucos. Mais fácil para descobrir cada peça no chão verde, no céu azul, no ar descondicionado, cheirando a mijinho do parcão.

Não sei mesmo, Efigênia, se você gostaria desse tudo junto na salona, na caixa sem asas. Os sapatos que já voaram da função bem poderiam ter sido colocados separados. Cada um num ninho, num nicho, num belo lixo e não ali servidos numa plataforma, numa mesa que não encaminha olhar, que faz caminha para exposição em série, que amortece a queda necessária.

Tinha muita coisa, gente. Helio e Efigênia são mestres do criar a partir do pouco, do grande resto, do belo gesto, do enorme barato que já é caro, do lixo que vai virando a cara para o consumidor que, de novo, prefere não se responsabilizar. Melhor, melhor: que joga na cara de quem consome e só. É... O que fazer com os arremedos humanos que habitam o planeta e pesquisam escapar para outros universos, quando tiverem deixado esse totalmente irrespirável?

Efigênia e Hélio fazem da arte a forma de se preocupar com o mundo, com a natureza. Precisam, alguns de nós precisamos, da certeza de estarmos fazendo alguma coisa.

É uma arte que fala por si, mas, se for para ser colocada na moldura do museu, necessita de investimento em módulos, estantes, separações, junções, flechadas funções. Precisam de ações, de implícitos movimentos, de voos coloridos, de um museu-céu mais especialmente iluminado, de uma abóboda estrelada. As peças merecem a individualidade num todo integrado.

Uma grande sapateira aberta ao léu? Bonecas planetárias girando no universo das nossas cabeças, embolando miolos e embalando jogos? Ai meus botões. Abrir, apertar, afastar, ajeitar, fechar, colar, costurar, pregar... Tum. Tum. Tum. Fica tudo martelando na cabeça e cravando no coração. E, de repente, um calar. E aí nasce um outro falar barulhento de papel de bala, de plástico e amarra. Uma língua cantada para pedir socorro, impregnada do jorro que respinga borra. Um café, por favor. Ou um caldo amargo numa xícara gigante no parque de diversão, girando e girando e girando modelos da Efigênia, nadando na gravidade centrífuga. Para o centro. Para o centro. Volver. Continência. Dance. Continência. Pule. Continência. Fuja. Continência. Não esqueça.

Tanto para valorizar nessa exposição. O que é que faltou? O projeto tem autoria de Estela Sandrini, com curadoria de Dinah Ribas e Maria José Justino. Elas são demais. Mas, acho que faltou investimento. Alguém que não elas, (a invisível estrutura que não privilegia cultura) deve ter achado que insignificância não precisa de varal de detalhamento. De um chão de conspirações inspiratórias formando um tapete quente, um duelo premente, um gêiser que não mente, abrindo espaço para uns pedacinhos excludentes que podem explodir e virar poeira cósmica ou uma joça faisquenta qualquer para dar um choque de realidade nesse povo que acha que é Zeus, que acha que faz muito ao ir ao museu, acompanhar uns e outros nos liceus, comparar tudo com odisseus e... Enquadrar. Ah, esses chatos e orgulhosos fariseus.

Ah, ufa, essas explosões reprocessadas, esses carinhos nas lixeiras, esses beijos grudentos que babam inutilidades, plasmando gota a gota outro adubo para a nossa terra... É tudo seu, amigo, amiga, amigue. É tudo seu. Efigênia e Hélio transmutaram. Recodificaram, rematizaram, mascaram, rasgaram, refundaram o que já não tinha fundo e lugar. Que já não cabia no mar. Não é o seu mar. Não é o seu ar. Não é cada qual no seu lar. A casa é do botão, seus bobos. Casam tão bem. Abrem-se para a nudez insignificante porque simples. Efigênia e Hélio fizeram e fazem a parte deles. E mais a nossa. A gente deveria tomar vergonha na cara. De litrão. Não o de refrigerante acompanhado de gibi do Mickey Mouse. Viu... Só para lembrar. Não é sua house. Não é sua house. Conta outra, vai. Os ratinhos brasileiros não merecem só o lixo.


Ai, desespero. Cara de pau, meio que desmaiado, sem saber o que fazer com a lixeirama. Efigênia e Helio, falem com ele, falem com ele.


FOTO 1 Efigenia e Helio. Foto: Wagner Roger

FOTO 2 Cara de pau. Foto: Karen Monteiro

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