De quem é o sutiã?
- Para de gritar isso seu i
- 21 de fev. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 24 de fev. de 2020

Varal esticado, cruzando a linha do trem. Vai e vem. O menino acorda, deixa a sua moradia, uma casinha de cachorro. Não creio ser preciso colocar um sinal de exclamação. O ponto final transmite melhor o silêncio incrédulo que nos invade na cena. Mas, veja, ele tem comida, deixada num pratinho no chão. Come e sai correndo pelo trilho para avisar no apito que o comboio vem vindo.
Trilho em caminho estreitíssimo, com muitos íssimos. Passa colado na gente, na nossa porta da frente. Nem sei se quero, nem sei se precisa falar em perigo nesse quintal-jardim-trilho entre a Georgia e o Azerbaijão. Parece tão incorporado ao cotidiano... É como se a noção de perigo fosse outra. Os moradores que numa cena aparecem sentados a mesas colocadas no trilho estão seguros porque, ironia, é um garotinho a segurança deles.
E ele passa correndo. Pri-pri. É o tempo de todo mundo correr também para puxar as roupas, tirar as mesas e a si mesmo do espaço que tem tantas funções. Se não der tempo de tirar o varal, o lençol, o sutiã, que remédio. Perde-se. Ou não. Não se o maquinista for o cara legal do filme, o Nurlan, obstinado em entregar o que o trem levou engatado na viagem... No caso do soutiã, dá um trabalho para achar a dona... Ele vai de casa em casa, ao longo da ferrovia e, com a ajuda do garotinho, arma uma estratégia que não vou contar. Metem-se os dois em uma baita enrascada.
Estranhas belas paisagens quase sem árvores essas lá para aqueles lados. Casa de pedra. Um ambiente árido, um filme sem apelo fálico, temperado pela leveza do senhor Nurlan, um ser despido do macho. Ele entra nas casas a procura, simplesmente, da mulher que tenha um par de peitos que caiba no soutiã. Algumas batem a porta na cara dele, mas muitas Gatas Borralheiras (as chamarei assim) experimentam, na esperança de ganhar um sutiã e não um príncipe, necessariamente. Mas é decepção atrás de decepção para o nosso velho príncipe Nurlan. Muito largo, muito apertado...
No final, descobrimos que não, esse não é um filme de príncipes e cinderelas, de romance e tal. Nem comédia para rir frouxo. O que escapa é mais aquele sorrisinho pensativo quando a gente se depara com algo ingênuo. Quando a gente percebe que é tão somente a história da vontade improvável de um personagem de entregar um sutiã perdido, preso ao trem na sua última viagem antes de se aposentar em silêncio. O silêncio aliás é o grande mérito do filme.
Silêncio nas palavras. Silêncio na trilha de uma vida inteira perpassada pelo barulho das rodas no ferro. Silêncio no acordar sem o cotidiano de anos. Silêncio no procurar um peito imaginário para quem sabe acolher a mudança. Silêncio no encontrar. Silêncio no questionar esse encontrar. Cada um sabe o que é o seu seguir em frente.
E se for tocando um instrumento, tanto melhor...
Se quiser ouvir algumas músicas do filme De quem é o sutiã, com direção do alemão Veit Helmer, aí estão:
Antes de terminar, preciso fazer uma ligação dessas que a minha cabeça, às vezes tão cabaça, insiste em projetar na minha tela mental. É com uma foto que fiz, por acaso, dias antes de ver o filme e que abre esse post. Alguns detalhes mais:


Fotografei na casa de uma amiga em Florianópolis que é atriz e desenha roupas. (Vou falar sobre a viagem para Florianópolis num outro post).
A esquálida manequim estava lá na casa dela encostada no muro do quintal, lá de lado. Os instrumentos feitos de cabaça estavam na casa. Só coloquei aos pés da manequim. A cabeça de cabaça eu inventei porque achei essa aí furada e jogada lá perto do tanque . A echarpe vermelha é coisa minha para unir pescoço à cabeça dessa desmiolada. E é bom para não pegar vento, já que permanece livre sem roupa, o sutiã saiu voando por aí e ela até agora não achou.
O peito dela, da manequim, eu acho, talvez coubesse no sutiã perdido. Que azar, heim, Nurlan? Esse trem nem pra chegar até aqui... E você procurar, procurar e não achar um par de peito em que servisse. Precisar passar por tudo aquilo... E aquele primeiro ímpeto de jogar fora que não vingou... Deixasse em algum lugar. Alguém haveria de achar. Não. Brincadeira. Admiro os obstinados. Mais ainda a maioria dos aposentados e aposentadas que nesse país não podem se dar ao luxo de perder roupa de baixo, roupa de cima. Aquela pilha de conta para pagar. Deles, dos remédios, dos netos. A cabeça cheia. O silêncio eu sei, pode ser bom para essas horas. Quando não é imposto. Nessas horas põe som nessa cabeça, nessa cabaça, que sai todo mundo ganhando mais. Vem Xequerê.
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