Ei, vocês livram de corona?
- CAIXA CAIXOTE CAIXÃO
- 10 de mai. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 25 de jun. de 2022
Teve receio em levantar. Pela fresta da cortina percebeu que o sol ainda não dava as caras, raios. Levantou. E decidida a tomar banho, lavar a cabeça, limpar as narinas, jogar uma água quente com bicarbonato na garganta. Limpinha, higienizada, sentou na sacada com a xícara de café na mão para esperar a mãe – que quase sempre acorda quase uma hora mais cedo - sair do quarto novamente. Não teve que fazer o café, nem a panqueca como seria de se esperar de uma filha nesse dia. Era mais um dia normal de quarentena – que coisa esquisita essa normalidade se instalando assim fácil - a não ser pela pequena churrasqueira que os moços vestidos de uniforme da empresa de limpeza pública - ei, vocês livram de corona? -, começavam a acender na calçada na frente da meia água a uma quadra e meia dali. A música CIÚME DE VOCÊ acordou a vizinhança. Nem eram nove horas. Aí veio NINGUÉM É MELHOR QUE NINGUÉM. Quando tocou IS LATE TO LOVE achou melhor ter a mãe perto, mas ela nada.
Mais umas duas músicas – que preferiu parar de citar por pura raiva da hegemonização musical – e a mãe levantou. Foi um abraço rápido com ela reclamando do frio. Ofereceu a cadeira da sacada. A mãe sentou. Tomando sol as duas e ela separando os sacos plásticos do supermercado para facilitar a secagem, foram tentando pensar no que estavam com vontade de comer no almoço. Não deu vontade de nada. Aí a mãe teve a ideia de fazer aquelas receitas rápidas de macarrão empapado na panela de pressão. A filha achou o cúmulo. Mas nem disse nada por causa do dia. A mãe nunca comia isso. E, além disso, quarentena tinha um ar de estado de guerra.
A sorte é que não havia presunto em casa. Nisso a filha tinha conseguido vencer. Mal entrava em casa a desgraça embutida de porcaria. O queijo comprado na padaria uns dias atrás - não sem receio por ser um a granel com mais possibilidade de contato com o corona - figuraria como proteína. Proteína. Proteína. Que irritação essa preocupação. Para a mãe dois dias sem já dava brecha para o fantasma da anemia. Nem explicava mais que não era bem assim. Engraçado que a mãe nem pensou na carne no congelador. Ufa. Ela não estava com vontade ou era um respeito pelo paladar alheio? Quem teria que ter, pelo menos, nesse dia não seria a filha? Não seria ela que teria que cozinhar? Mas resolveu deixar quieto, já que a mãe levantou e foi procurar uma receita no celular.
Mulher moderna aos 80 anos pensou a filha sentada no chão depois de semanas sem fazer isso com medo da contaminação, mesmo o chão sendo limpo toda semana. Mesmo os sapatos ficando no capacho para fora da porta de entrada do apartamento. Não. Não era um dia normal de quarentena. Não. Não. Mas fazia yoga. Mas estendia um negócio no chão. E cuidava para colocar sempre do mesmo lado, não com um certo alívio da absolvição da pecha que porventura pudesse ter adquirido de neurótica.
Lembrou horrorizada de uma sessão de cinema – quando ainda se ia - em que havia levado uma mistura de castanhas com uvas passas para comer no intervalo para o debate. Faltavam uns minutos para começar e resolveu abastecer a ansiedade (porque às duas horas da tarde não poderia ser fome). Pegou o pacote desajeitadamente e viu uma parte das caras castanhas se derramarem no chão. Ai que droga. Ai que pena. A moça que vinha passando para se sentar na cadeira depois da dela, abaixou-se rapidamente e pegou. E não fez movimento de ir jogar no lixo. E pôs na boca. E mastigou sem nojo. Aqui é limpo, justificou-se. Se fosse num banheiro não faria. Ué, mas ela tinha acabado de vir do banheiro. Pensou em chamar a atenção, mas desistiu. Achou que essas coisas se fazem com criança. Nunca esqueceu. Em casa também pegava coisas do chão, de vez em quando. Não agora. Foi-se o tempo em que costumava dar uma copadinha ou uma levadinha rápida com água e mandar a ver. Em casa se tem a falsa sensação de proteção. Se não se tira o sapato, pior. No final era tudo igual. A imunidade até aqui tinha funcionado. O problema era que esse vírus era o dobro de assustador. Era muita gente no caixão até agora para facilitar.

Um "E daí?" continuava soando como filme de horror. Assustava mesmo. Nem era mais um arrepio de medo. Era um desespero contínuo. Temia a corona. Temia o presidente. Num dia normal de quarentena. Era isso que eles queriam: Instalar o terror. Mas, para ela acabava não funcionando. Tinha fervor revolucionário. O medo não paralisava. Estava pronta para luta nesse domingo que, pelo jeito, ia passar com fundo musical, protagonizando a vontade de ir para o caixão,sem resposta à pergunta inicial.
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