Respiro
- CAIXA CAIXOTE CAIXÃO
- 30 de mar. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 25 de jun. de 2022

Não deveria nem perguntar. Não deveria nem haver dúvida. Mas vai lá. Quem é o louco? O marido que leva um cão pra ser morto porque o bichão resolveu deitar na cama do casal ou a mulher que, para tentar não enforcar de ódio o marido, resolve sair de barco com desconhecidos? Sim. São homens. E daí? Se fosse um homem saindo com desconhecidas mulheres, poderia? Ah! Mas, tem o perigo da violência. Sabe-se lá quem são os homens. Pois é.
Quem é o louco mesmo?
A mulher que precisa de uma injeção sossega-leão depois de presenciar o filho apanhando bem com consentimento do marido? Ou o marido que consente depois que o pai de um garoto vem tirar satisfação porque o filho foi atingido por um pedra no olho numa briga de rua?
É louca a mulher que nada de calcinha numa praia quase deserta junto com os filhos? Precisa ser repreendida pelo marido porque ele se sentiu constrangido diante dos colegas pescadores que, por acaso, passaram num barco e viram aquele absurdo? Preciso colocar entre aspas a palavra absurdo para você que está lendo tenha certeza de que estou sendo irônica?
Calma é algo possível nessas situações em que o louco sistema de lucidez padrão coloca os seres que tentam se libertar? Até quando a máquina de oprimir vai continuar chamando de loucos os que ela mesmo tenta “enlouquecer” e não reconhecer como cidadãos?
Falando da fotografia do filme “Respiro”. O lugar em que foi gravado na Itália é lindo. Difícil que as imagens não fossem. As cenas de mergulho, as bolinhas de ar debaixo da água... Tudo lindo agravado pela trilha soprada em grave. Marcantes as locações. Sim. Mas o que eu quero colocar em discussão é uma cena interna no quarto do casal em que a personagem acorda depois de tomar a injeção para se acalmar. Vou falar dessa cena porque estou numa luta por mudanças de hábitos que, dizem, tornam a mulher mais feminina.
A personagem acorda com a mão dura de fechada. Ela segura algo. O algo é um vidro de esmalte. Pensei. Ah, para. Ela não tem o perfil de se preocupar tanto com unha pintada. Mora na praia e tal... Quem tira o esmalte da mão dela é o filho que abre o vidro e passa a pintar as unhas do pé da mãe. Por que é que essa cena está aí?
Primeiro achei que era só mais um clichê chato sobre o feminino. Mas, o filme tem uma outra cena que leva a gente pra outro caminho. A mulher pega um batom vermelho e começa a pintar a cara dos filhos, a cara dela... Tenta pintar a do marido. Estão todos brincando. “Seria bom se você ficasse um pouco vermelho”, ela diz. Ou algo assim. Mas, ele é macho. Macho não se pinta com batom.
Acho que o filme consegue questionar o padrão. A mão fechada que segura o esmalte mesmo dormindo, depois de uma crise de raiva, pode ser analisada como uma atitude neurótica. Algo que ela quer, mas não consegue se livrar, algo que a aprisiona. Um pavor mesmo de ter esquecido de fazer a unha. Um intimidamento perante a crítica. Um símbolo para tudo que faz das mulheres quererem ser bibelôs, que as fazem aceitar passivas o fato de terem que gastar boa parte do salário mínimo no salão para alisar e pintar cabelo, para fazer unha como forma de se cuidar, como forma de higiene. E as mulheres que não seguem a cartilha são taxadas como pela máquina do consumo? Relaxadas.
E assim, as mulheres vão aceitando passivas os comentários maldosos dos funcionários dos salões que querem vender produtos e não hesitam em mexer com a autoestima delas. “Ai amiga, seu cabelo tá uma palha”. “Não me deixe essa cutícula sem tirar mais de quinze dias, por favor. Passa um ar horrível”. É uma corrente perversa. Elas, por sua vez, tentam mexer com a autoestima das outras mulheres.
Tudo para justificar o que não conseguem mudar em si mesmas. E elas dirão. Quem disse que queremos mudar? Pois é. Deixa pra lá. É hábito arraigado demais. Não tá mais aqui quem falou. Façam o que quiserem (ou que acham que querem) e nos deixem, nós, as relaxadas, relaxando. Preferimos os parques, as praças (ou os sofás e sacadas pandêmicos mesmo), ao ambiente fútil, fofoquento e sem graça dos salões.
Ah! Estava pra dizer que o personagem mais chato do filme é o policial bonzinho que faz vistas grossas em algumas situações. Mas, pensando melhor, que bom se mais policiais fossem iguais a ele em vez dos trogloditas que a gente vê por aí. Isso partindo do pressusposto que ele não agiu com bondade só por interesse.
*O filme estreia dia 1º de abril no Belas Artes.
Dados da divulgação:
Respiro (Respiro) Itália, 2002, Drama, 95min, 14 anos Direção: Emanuele Crialese Elenco: Valeria Golino, Vincenzo Amato, Francesco Casisa Sinopse: Grazia vive em uma Ilha na Itália com seu marido e seus três filhos. A pequena população da vila de pescadores a consideram louca e pressionam seu marido para que o mesmo a interne em uma instituição. Ele se recusa, mas mesmo assim Grazia foge. Curiosidades: Vencedor do Grande Prêmio da Semana da Crítica no Festival de Cannes 2002. A atriz italiana Valeria Golino despontou para o estrelato mundial ao aparecer como a namorada de Tom Cruise em "Rain Man" (1988), mas em sua filmografia, com mais de 100 títulos e quase 70 prêmios, constam grandes atuações em trabalhos realizados dentro e fora da Itália. Para o elenco deste filme, o diretor Emanuele Crialese escalou somente atores amadores, com exceção de Valeria Golino.
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